Tenho refletido neste espaço sobre uma experiência pessoal de ter passado por uma delicada cirurgia cardíaca, quando eu tinha 53 anos de idade e estava em um momento muito significativo e promissor da minha vida, especialmente em termos profissionais. Em outra oportunidade, no texto “A espiritualidade diante da frustração e do medo” (clique aqui para ler) falei das minhas inquietações diante daquele quadro e do meu receio de morrer.
Agora, quero compartilhar algo específico e que para mim foi de muita grandeza ética e espiritual. Ao chegar ao hospital, após os momentos de procedimentos burocráticos e de espera, tive a oportunidade de ser atendido por um técnico em enfermagem, que seria o responsável por executar a depilação de partes do meu corpo para a cirurgia. Como não recordo o nome dele, vou chamá-lo aqui de Fernando Siqueira, que me relatou estar em vias de finalizar o curso de Psicologia. Ele me pareceu um técnico exemplar, e, por mais que tivesse por obrigação somente executar o seu serviço Técnico de Enfermagem, procurou dialogar bastante comigo. E falou coisas significativas, das quais eu me lembrei durante os dias que se seguiram ao procedimento cirúrgico.
Algo importante que percebi em Fernando foram o zelo e o cuidado para com os pacientes. Aliás, constatei esse mesmo comportamento em todos os profissionais que cuidaram de mim nos nove dias que fiquei internado naquele hospital. Como eu disse, para além da técnica, ele se importou com a realidade da minha vida. Entre outras coisas, me deu indicações de como eu deveria agir a partir daquele momento. O que ele falou foi algo muito simples: basicamente, que dali em diante eu precisaria aprender a fazer tudo novamente; que o processo cirúrgico iria me levar a um estado de reaprendizagem. Ou seja, deveria reaprender as coisas básicas da vida como respirar, falar, andar. Essas palavras me ficaram gravadas: eu, um menino novamente! E, assim, aguardei, esperanço e confiante, o momento da cirurgia.
Em minha mente vieram as palavras do teólogo Rubem Alves, em Creio na Ressurreição do Corpo:
Deus fez-nos corpos.
Deus fez-se corpo. Encarnou-se.
Corpo: imagem de Deus.
Corpo: nosso destino, destino de Deus.
Isto é bom.
Eterna divina solidariedade com a carne humana.
Nada mais digno.
O corpo não está destinado a elevar-se a espírito.
É o Espírito que escolhe fazer-se visível, no corpo.
Depois de todo o processo, me dei conta que tudo havia ocorrido conforme Fernando, o técnico de enfermagem e o primeiro a me atender quando me internei, me falara. Logo, nos primeiros momentos após a cirurgia, já na UTI, com muita dor e bastante sensibilizado emocionalmente pela operação recente, realmente pude experimentar na pele, na própria carne, as palavras daquele jovem. Como a fala está diretamente ligada à respiração, a sensação que eu tive – e acredito que seja a de todos que passam por cirurgias semelhantes – é que não conseguiria falar novamente. O simples movimento de aspiração mais profunda na tentativa de articular alguma palavra era doloroso e dificílimo. E não somente a fala, mas todos os atos vitais que invariavelmente envolvem a respiração estavam comprometidos naquele momento.
As palavras de Fernando me ajudaram a encarar aquelas limitações, que precisariam ser superadas pouco a pouco com todo o cuidado, como na vida das pequenas crianças. Experimentei no próprio corpo como a atitude daquele jovem rapaz foi, de fato, sublime.
Sugestão para leitura:
Ribeiro CO. “Ando devagar porque já tive pressa…”. Disponível em: https://profanum.com.br/?p=1147&
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