Felizes os que choram, porque serão consolados!
Evangelho de Mateus 5.4

É certo afirmar que todos nós crescemos cercados de muitos “nãos”. Há uma série de regras, convenções e expectativas que desde cedo precisamos conhecer e observar, a fim de encontrar nosso lugar na dinâmica da vida. Esse mecanismo de construção do “eu” e de entendimento do entorno não é fácil e, em certa medida, atravessa a existência de todos nós.
Mas quero aqui me debruçar sobre uma das “regras” que ouvimos desde os primeiros dias de vida, a contar das primeiras e imemoriais imagens e escutas. Desde o berço, somos acolhidos e acolhidas em braços que sussurram em nossos ouvidos: – Não chora!
Aprendida a “regra”, passamos também a reproduzir essa solicitação, com nossos próprios filhos/as e/ou qualquer pessoa que, perto da gente, esteja passando por um momento que pede a lágrima.
Notei com a experiência que essa interdição do choro do outro tem muito a ver com nossa própria dificuldade de lidar com o lamento alheio e, por não saber como reagir, a gente interrompe dizendo para a pessoa que não precisa, que chorar não resolve, que no chorar a gente perde tempo de encaminhar as soluções.
Escrevo estas linhas nos primeiros dias de junho e compartilho aqui que minha família no Rio Grande do Sul foi impactada pelas inundações de maio último. Tanto meus pais como a família de minha irmã tiveram seus apartamentos inundados por semanas, água/lodo que destruiu os móveis e um conjunto importante de lembranças e objetos cheios de afetos.
Depois de semanas, com o recuo das águas, enfim minha irmã e cunhado conseguiram entrar no apartamento deles. Fiquei com meus pais e sobrinhos neste dia. Já à noite chegaram, trazendo o pouco que conseguiram salvar. Minha irmã estava visivelmente impactada, atravessada, destruída, mas manteve-se firme até descarregarmos o que trouxeram. Com tudo mais calmo, encontrou com nossa mãe que cuidava do neto menor no quarto da frente e, enfim, permitiu-se chorar.
Choro incontido, desaguar da alma, rosto em terra.
Por um momento fui tentado a entrar ali e dizer a ela:
Não precisa, chorar não resolve, no chorar a gente perde tempo de encaminhar as soluções.
Mas não fui.
Não fui porque não acredito mais nestas coisas. Meu olhar se converteu. Acredito como o redator bíblico que há tempo de chorar (Eclesiastes 3.4) e que esse tempo é precioso, inclusive para a desconstrução deste paradigma de força que tanto mal tem feito a tanta gente.
Em muitos momentos da vida, especialmente quando a palma da mão toca o fundo, a catarse é necessária e nos reposiciona. Alivia a alma. Desagua a tristeza. Derrama o que não deve ser contido.
Talvez você esteja atravessando algum momento de noite densa, de dor, tristeza ou algo que o valha.
Não relativize o seu sentir, nem permita que ninguém o faça.
Somos um universo de coisas e, por vezes, importa chorar.
Aprendi a não interromper nenhuma lágrima, menos ainda a minha.
Se nos encontrássemos eu te diria: – Toma aqui meu ombro! Vai passar!

Sugestão para leitura:
Garcia PR, Silva GJ, Paula B, Siqueira TM, Bastos LC. Corpos enlutados: apontamentos para o cuidado pastoral. São Bernardo do Campo: Caminhando. 2010; 15:119-126.
Paula B, Reimer IR, Lopes EP, Lopes NCS, Neto RG, et al. Formação teológica no curso semipresencial. São Bernardo do Campo: Caminhando. 2009; 14:81-86.
Paula B. Temas que desafiam a psicologia pastoral. São Bernardo do Campo: Caminhando. 2008; 13:147-154.
SPDM. Luto: a dor da perda é insuportável, mas transitória. Disponível em: https://spdm.org.br/noticias/saude-e-bem-estar/luto-a-dor-da-perda-e-insuportavel-mas-transitoria/

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